1ª lição das melhores escolas públicas
VEJA.com viaja 10.000 quilômetros pelo país para entender como algumas escolas escapam à tragédia do ensino nacional. As descobertas desta cobertura serão publicadas ao longo das próximas semanas
As margens da rodovia CE 362, a escola municipal Coronel Araújo Chaves
é distante de tudo. Fortaleza, a capital cearense, fica a 220
quilômetros dali. O centro de Sobral, município do qual faz parte, está a
mais de 50 quilômetros. Ao redor da Araújo Chaves, contam-se nos dedos
algumas casas. O resto é um amplo sertão que se estende até onde o olhar
pode alcançar, um quadro agravado por três anos de seca. Quem chega ao
portão da escola, contudo, se depara com uma faixa cujo conteúdo destoa
da penúria ao redor: "Temos Ideb 9." Sim, contra todas as expectativas, a
escola pública do sertão atingiu uma nota altíssima (a escala vai de 0 a
10) no Índice Nacional da Educação Básica, indicador do governo que
combina desempenho dos alunos em provas de matemática e língua
portuguesa com taxa de evasão de estudantes. Quanto maiores as notas e
menor a fuga de alunos, melhor o conceito da escola. Com a nota 9, a
Araújo Chaves superou em muito a média brasileira de 2013 — um medíocre 4
— e deixou também para trás a meta que o Ministério da Educação
estabeleceu para o país... em 2021 — que é de 6,1. Seriam os alunos ou
professores da escola cearense marcianos?
Para entender como a Araújo Chaves e outra escolas conseguem escapar
da trágica situação da educação pública brasileira, a reportagem de
VEJA.com viajou mais de 10.000 quilômetros Brasil adentro. Durante três
semanas, visitou seis municípios espalhados por três regiões: Sapiranga e
Campo Bom, no Rio Grande do Sul; Cosmópolis e Vinhedo, em São Paulo; e
Pedra Branca e Sobral, no Ceará. O produto dessa longa reportagem será
publicado em seis capítulos ao longo das próximas semanas.
Essas cidades mantêm redes de ensino que provam que, em primeiro
lugar, o sucesso dos estudantes depende do comprometimento de gestores
públicos e educadores. Na escola cearense, assim como nas outras
dezesseis instituições visitadas, soluções simples — mas planejadas e
eficazes — ajudam a desmistificar discursos de que a educação só avança
com tecnologia de ponta ou com muito, muito dinheiro. Alguns exemplos de
práticas comuns a todas: dever de casa, correção de execícios em
classe, avaliação constante de alunos, controle rigoroso de frequência,
reforço para os que apresentam dificuldades.
As dezessete escolas visitadas fazem parte das melhores redes de
ensino fundamental público do país. Isso significa que as redes
municipais das quais fazem parte obtiveram as médias mais altas na Prova Brasil,
avaliação do MEC que afere o conhecimento dos alunos brasileiros em
português e matemática (e que compõe o Ideb). Os seis municípios
visitados estão entre os vinte mais bem colocados do país no ranking de
2011 e devem manter a posição no levantamento de 2013, que deve ser
lançado em breve pelo MEC.
Outro ponto em comum entre esses municípios é a continuidade da
política educacional. Garantir que trocas de guarda no nível municipal
não acarretem mudanças de rumo na sala de aula é considerada uma medida
fundamental por educadores. Isso afasta casuísmos e invencionices. "No
Brasil, confunde-se programas de longo prazo com projeto político. O
resultado são sistemas cheios de remendos. Políticas educacionais não
deveriam depender de partidos ou pessoas", diz João Batista Araújo,
presidente do Instituto Alfa e Beto.
Em Sobral, reconhecida como a melhor rede pública de ensino do país,
as ações que alavancaram as notas tiveram início em 2001, sendo mantidas
por quatro gestões diferentes. Naquele ano, a Secretaria de Educação
avaliou todas as escolas e constatou que 48% das crianças no 3º ano do
ensino fundamental eram analfabetas. "Tínhamos quase cem unidades, a
maioria em locais afastados e fazendas, com apenas uma sala e sem
recurso algum", diz o atual secretário, Júlio César da Costa Alexandre. A
primeira medida para reverter o quadro foi reduzir o número de escolas,
o que facilitou a administração dos recursos e das equipes. Das cem
unidades, restaram apenas 38, que passaram a receber os estudantes dos
locais mais afastados que chegavam em pau-de-arara e, mais recentemente,
em ônibus escolares.
A seleção de diretores e professores também passou por uma mudança
drástica. As equipes das escolas deixaram de ser nomeadas a partir de
indicação política. Instituiu-se um concurso público, que inclui prova,
banca, entrevista e análise de currículo. Apenas professores com nível
superior podem ser contratados. "Após o concurso, 75% dos funcionários
foram trocados. Muitos vereadores se revoltaram, porque a nomeação era
usada como moeda de troca para angariar votos", conta Alexandre. Em
seguida, Sobral passou a avaliar os alunos semestralmente. Os testes
mostram onde está o problema e, consequentemente, os temas que devem ser
retrabalhados em sala de aula. Simultaneamente, os professores
começaram a ser submetidos a cursos e bonificados por bons resultados.
No extremo oposto do país, a rede de Campo Bom, município de 63.767
habitantes que fica a 51 quilômetros de Porto Alegre (RS), seguia mais
ou menos o mesmo caminho. Ao longo dos dez últimos anos, o regimento
escolar foi adaptado para as 43 escolas da rede e a formação de
professores, intensificada. No início de 2011, a rede passou a avaliar o
desempenho dos alunos a cada três meses. "Com os dados, investimos na
formação dos professores, que agora se reúnem quinzenalmente para montar
os planos de aula. As boas práticas são compartilhadas para ajudar na
superação de dificuldades", diz Eliane dos Reis, secretária municipal de
Educação, no cargo há seis anos.
A evasão de alunos caiu e o desempenho deles subiu. Quase todos estão
permanentemente envolvidos em projetos paralelos, mas aliados às
disciplinas regulares. Na escola Presidente Vargas, por exemplo, há
projetos de leitura, jornal on-line, música e ciências. Um deles
conquistou o 1º lugar na feira de ciências da cidade: apresenta um
sistema de aquecimento de água pensado por um grupo de alunos do 8º e 9º
anos durante uma aula de física. "As merendeiras reclamavam que a água
que abastece a escola é gelada durante o inverno. Criamos um projeto de
baixo custo para aquecer a água, montamos a maquete em 3D e apresentamos
aos jurados", conta Natália Marques, aluna do 9º ano. O prêmio de 2.000
reais já está sendo usado para tirar o projeto do papel. "Agora vamos
negociar com a Secretária a reprodução do modelo em outras escolas", diz
a estudante, exibindo um plano de trabalho que daria inveja a muitos
empresários.
Para a diretora da unidade, Neuza Maria Vasconcellos Thomas, o alto
desempenho dos alunos é resultado do trabalho planejado, incessante e
que não se desvia do objetivo primordial. "A escola está instalada em um
bairro operário e amargava notas muito baixas em comparação às demais. O
trabalho impulsionou as notas pouco a pouco e, neste ano, veio o
resultado mais alto na Prova Brasil e também nas competições escolares",
diz Neuza, que está em sua segunda gestão à frente da escola. "Agora
eles têm certeza que recebem as mesmas oportunidades que os demais."
É justamente a garantia de que todos os alunos receberão a mesma
atenção o que possibilita que as redes municipais se destaquem no
ranking da Prova Brasil. A ideia é que de nada adianta criar as chamadas
"escolas-modelo", ilhas de excelência dentro de um mar de mediocridades
e descaso. As administrações municipais que entenderem a importância de
levar bom ensino a todos concorrerão a um prêmio neste ano: o Prefeito Nota 10,
a ser conferido pelo Instituto Alfa e Beto a partir dos resultados da
Nota Brasil 2013. "Para ser bem-sucedida, uma rede de ensino precisa ter
regras claras sobre currículo, contratação de diretores e plano de
carreira docente, com ações que cheguem a todas as escolas e correção
dos problemas tão logo eles são detectados. Em geral, as redes de ensino
no Brasil não partem desse princípio e, por isso, o ensino público vai
mal", diz Araújo, do Alfa e Beto.
Sala de aula da Escola Municipal Coronel Araújo Chaves, melhor instituição pública do Ceará e uma das melhores do Brasil, com Ideb Nota 9. Segredo do sucesso está em ações simples eficientes, como correção do dever de casa e planejamento semanal de aulas. - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Faixa colocada na entrada da escola após a divulgação das notas do Ideb. "Queremos mostrar para todo mundo que aqui fica a melhor escola da rede", diz Luidmila Sá, diretora da unidade. - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Açude seco, próximo Escola Municipal Corenel Araújo Chaves, no distrito da Bilheira, a 50 quilômetros de Sobral e 220 quilômetros de Fortaleza. - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Estudante da rede pública de Sobral brinca no quintal de casa. A mãe, Maria Elma Ribeiro Taveira, agricultora de 36 anos, tem oito filhos. "Todos na escola", diz. - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Turma do 4º ano da escola Araújo Chaves durante aula de língua portuguesa. Na lista de livros preferidos dos alunos, grandes mestres da literatura como William Shakespeare e Amós Oz - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Nada de carteiras enfileiradas: nas salas de aula da Araújo Chaves, o professor faz questão de manter os olhos e a atenção de todos os alunos - Ivan Pacheco/VEJA.com |
Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/continuidade-1-licao-das-melhores-escolas-publicas